Pouco antes de 200 moradores ocuparem as cadeira estofadas do Auditório Dante Barone – em uma Audiência Pública histórica e inédita sobre “O extermínio, as agressões e a falta de políticas públicas para o povo da rua” ocorrida em 24 de maio-, um rapaz foi abordado pela Brigada Militar por ter cometido o “crime” de dormir em um banco na Praça da Matriz. Paulo Ricardo Camargo de Oliveira, morador do local, também dormia quando recebeu quatro tiros nas costas dois meses atrás. Até hoje a polícia não divulgou qualquer suspeito do crime, apesar do matador ter deixado cair um telefone celular com fotos e impressões digitais.
Além de Paulo, a lista de moradores de rua assassinados ou vitimados pelo descaso da saúde pública desde o começo de 2017, é farta. Os nomes foram escritos em cartazes colocados diante da pomposa mesa ocupada pelos deputados integrantes da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e também pelos representantes dos solicitantes da audiência: ALICE/Jornal Boca de Rua e Movimento Nacional da População de Rua/RS. Também sentaram-se à mesa os apoiadores da causa e as autoridades presentes, como a representante da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Civil. A Secretaria Estadual de Segurança Pública e a Brigada Militar, apesar de convidadas, não compareceram.
No debate- mediado pelo deputado Jeferson Fernandes (PT), presidente da Comissão- o cenário retratado foi de total violação de direitos. Segundo os presentes, a violência contra moradores de rua cresceu em progressão geométrica, além de ser praticada também pela sociedade civil. Há relatos de milícias, de queima de barracos e de espancamentos até a morte por civis.
Um dossiê de mortes, agressões e violências colhidos pelo jornal Boca de Rua serviu como subsídio para a realização da Audiência. Mas muitos outros casos surgiram, relatados pelos próprios agredidos que, apesar de conscientes da possibilidade de represálias, tiveram a coragem de falar. Edisson de Souza Campos, representante do Jornal, inclusive, ofereceu-se como testemunha no caso do assassinato de seu colega Rodrigo Veloso, falecido em março, após ser brutalmente assassinado por uma torcida de futebol.
Edisson foi enfático ao solicitar que mais moradores de rua fossem ouvidos, já que o microfone passava de mão em mão entre as autoridades. Cristina Pozzobon, da ALICE reforçou o apelo, lembrando que a grande mídia ignora ou minimiza as denúncias. “O mais importante é ouvi-los e estamos aqui para isso. Eles têm muita coisa para nos contar. Para além da violência física mais explícita, há também a intolerância, o ódio manifestado pela população, não só pela polícia, pelo Estado. Há preconceito, exclusão e abandono”.
Para Célio Golin, do Nuances – Grupo Pela Livre Expressão Sexual, a situação está diretamente ligada à ideologia do estado mínimo, com sua proposta de desmonte das políticas de assistência social. Em outras palavras, isso significa que, além das agressões, está ocorrendo um sucateamento nos equipamentos e que o tratamento aos usuários piorou em qualidade e quantidade. “Há gente morta porque foi assassinada e pessoas que morreram por falta de assistência de saúde ou social; mortos por fascismo e por falta de acolhida”, disse a educadora social Veridiana Machado, uma das representante do MNPR. Igualmente vinculado ao MNPR, Richard Campos disparou: “A população de rua não aceita mais o lugar de exclusão e invisibilidade. A mesma população que lota o Dante Barone é capaz de fazer uma grande manifestação”.
Ao final da Audiência, o presidente da Comissão se comprometeu encaminhar as denúncias à Brigada Militar, cobrar o andamento das investigações dos assassinatos junto à Polícia Civil e organizar visitas aos abrigos e albergues, além de manter aberto o diálogo com os movimentos. A mobilização do povo da rua, porém, continua, com o adesão direta da Escola Porto Alegre que veio se somar à Alice/Boca de Rua e MNPR.